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Cafés literários
(de Lisboa y otras capitales europeas)
MARIA JOSÉ MAUPERRIN
Publicado en la REVISTA EXPRESSO (http://primeirasedicoes.expresso.pt/)
Veio do Oriente e chamaram-lhe «vinho do Islão», quando Maomé dele tirou proveito e exemplo. Foi tido como remédio de todos os males para que a medicina não encontrava panaceia. Inspirou tertúlias. Reis e cardeais apreciaram-no e um ou outro perseguiu-o. Por muito mais passou antes de se tornar universal e tão estimado até merecer a atenção de Bach, que à composição que lhe dedicou deu o nome de «A Cantata do Café»
Quando, como remate de refeição, mesmo apressada, saboreamos a «bica», tirada a preceito e servida em chávena escaldada, ignoramos que devemos esses fugidios momentos de prazer aos turcos que, entre o final do século XV e princípios do XVI, introduziram o café na Europa Oriental.
Em 1683, o exército de Kara Mustafá sitiou Viena. O destino da toda a Europa dependia da resistência dos vienenses, que contavam com o auxílio dos polacos, e do príncipe Eugénio de Sabóia. Se a cidade caísse, o Ocidente soçobraria. Mas a ousadia do estratego polaco Georg Kolschizky iria travar a invasão islâmica.
Na fuga desordenada, os turcos deixam ficar todas as riquezas provenientes dos saques que haviam feito. Cabia ao obreiro da vitória escolher o que quisesse do espólio do inimigo. Surpresa geral causou Kolschizky ao desdenhar objectos preciosos e apenas exigir que lhe fossem entregues uns insignificantes sacos de grãos escuros, que mais pareciam forragem para animais.
Mas o militar polaco vivera no Oriente e sabia o que escolhia. Na posse da então exótica matéria-prima, Kolschizky instalou-se em Viena, onde abriu um salão de convívio, diferente pela bebida que servia: uma decocção a partir do café. Estava ciente, no entanto, de que nem a cor escura nem o travo amargo agradariam aos clientes. Por isso, aclarou a bebida com leite e adoçou-a com mel. E, para que as borras não maculassem o fundo das chávenas, inventou uns filtros. Diz-se que assim nasceu o café à vienense. Verdade seja que a receita se conservou. Ainda é hábito nos bem preservados cafés de Viena, ao servirem o chamado «vinho do Islão», acompanhá-lo com de copo de água e uma leiteira de creme.
Não há certezas de quando e onde foi descoberta a planta do café. António Fausto Nairone, monge e professor de teologia na Sorbonne no princípio do século XVII, deixou testemunho escrito de que um velho padre católico de um mosteiro perto do Mar Morto ficara curioso ao ver o desassossego das cabras que pastavam nas colinas fronteiras, depois de se terem regalado com as folhas verde-escuras, duras e brilhantes de um arbusto baixo, com bagas violetas em forma de pequenas cerejas.
Logo o devoto homem se deixou levar pelo desejo da experimentação. Colheu algumas bagas e fê-las ferver. Sem hesitações, ingeriu o quente líquido. O efeito foi imediato. O corpo já não lhe pesava tanto; as ideias ocorriam-lhe mais claras, mais vivas e, sobretudo, mais rápidas. Não sentia nem cansaço nem sono. Encontrara a bebida ideal para enfrentar as longas noites de vigília e oração.
Se outra versão têm os persas sobre as origens do café, não são menos entusiastas quanto aos efeitos da bebida. Faz parte dos contos tradicionais que, em certa ocasião, Maomé ficou doente. Sentia-se enfraquecido, dominado por estranha letargia. Nenhum tratamento resultava. Mais parecia atacado de mal incurável. Apiedado, o Arcanjo Gabriel deu-lhe a beber um líquido desconhecido. E logo o Profeta recuperou. E com tal vigor que não só «derrotou quarenta ferozes guerreiros como ainda possuiu quarenta mulheres.»
A partir daí, devido à proibição de bebidas alcoólicas pela religião maometana, o café adquiria entre os persas o estatuto de bebida do Profeta; o «vinho do Islão». E o hábito de o beber tomou-se ritual quotidiano. O que, na segunda metade do século XVI, surpreendia europeus em viagem pelo Império Otomano. Que bebida seria aquela que juntava as pessoas para ingerirem um líquido muito quente numa chávena que passavam de mão em mão? Um médico, depois de ter visitado a Pérsia e a Síria entre 1573 e 1578, escreveu: «Eles utilizam uma bebida, de que gostam muito, a que chamam 'chaube'. É negra corno a tinta e dizem que é muito útil contra alguns transtornos de saúde, especialmente os de estômago.»
Mais tarde, em 1626, Thomas Herbert, autor de «Uma Viagem na Pérsia», escrevia: «Não há nada de que os persas mais gostem do que do 'coho' ou 'cofa', a que os turcos chamam café. (...) Bebido quente, parece fazer bem: afasta a melancolia, seca as lágrimas, acalma a cólera e provoca sentimentos ligeiros. (in «(Les Cafés Littéraires», de Gérard-Georges lzmaire.)
O que sobretudo fascinava os visitantes ocidentais era contudo, o convívio proporcionado nos locais onde se servia aquela bebida: uma interdependência de saberes que passavam pela religião e literatura, política e filosofia e prazeres do jogo e do lazer.
Depois das montanhas da Etiópia, seria a vez de o Iémen beneficiar de elevados níveis de produção de café. No século XVI, o Cairo era o grande mercado distribuidor do produto. Para manterem o monopólio da rubiácea, os árabes só permitiam a exportação dos grãos previamente fervidos. Pretendiam assim impedir que a planta germinasse noutros locais; o que não resultou. Os holandeses fariam plantações desde Java às Antilhas, de onde trariam a matéria-prima para a Europa.
Inicialmente, os europeus apenas aderiram ao café como remédio; uma espécie de panaceia capaz de curar muitos e variados males. Só no século XVII é que passaram a utilizá-lo como bebida. O que não foi aceite pacificamente, sobretudo pela Igreja.
Os mais devotos tentariam convencer o Papa Clemente VII a condenar o que eles viam como invenção de Satanás. Menos radical e mais sensato, o Papa preferiu provar antes de sentenciar. E daria a seguinte resposta: «Esta bebida é tão deliciosa que seria um pecado deixá-la somente para os infiéis. Vençamos Satanás dando-lhe a nossa bênção e tornando-a verdadeiramente cristã.»
Aquietadas as consciências católicas, os cafés proliferaram em Veneza e Génova. No final do século XVII, já os havia por toda a Itália, depois de, na Oxford de 1650, um judeu libanês ter aberto o primeiro estabelecimento de venda do produto na Europa. Em 1652, um grego, Pasquá Rosée, abriria a primeira «coffee house» em Londres. Homem de visão, mandou publicar em «The Publisher Adviser» um anúncio - considerado o mais antigo que se conhece para publicitar um café: «Na Travessa Bartolomeu, por detrás da Bolsa Velha, pode tomar-se a bebida chamada café, muito saudável e portadora de muitas virtudes; fecha o diafragma, aumenta o calor interno, ajuda a digestão, aguça o espírito, dá leveza ao coração. É boa para a dor de olhos, tosse, resfriados, tuberculose, dor de cabeça, hidropisia, gota, escorbuto, escrofulose e muitas outras moléstias. É vendida tanto de manhã como às três da tarde» (in «A História do Café», Meliha, Brasil).
A partir daí, foi o sucesso. Mas nem todos estavam de acordo. Sobretudo os cervejeiros e as mulheres, talvez influenciadas por estes. As inglesas protestavam contra o que chamavam «o novo vício» dos maridos, que lhes tirava a força viril e os tornava «áridos como as areias da Arábia», de onde tinha vindo aquele «grão maldito».
Existiam cafés para todos os gostos e profissões. Em alguns, médicos de nomeada atendiam os seus doentes. Noutros era proibido praguejar e discutiam-se os pecados susceptíveis de levar à condenação eterna: eram as «coffee houses» dos puritanos.
O historiador e poeta inglês Thomas Macaulay diria que, «naquele tempo, o café londrino bem poderia ser considerado uma instituição política. Havia neles oradores cujos discursos eram seguidos com grande atenção e funcionavam como contra-poder.»
Entretanto, em Paris abria no Petit Chatelet uma pequena loja de venda de grão e também de infusão de café. Pela novidade e pelo preço, a moda chegou sobretudo à corte da regente Ana de Áustria, mãe de Luís XIV. Indiferente não lhe ficaria também o cardeal Mazzarini, que mandaria vir de Roma um especialista no preparo da bebida.
Depois tomar-se-iam famosos os jantares oferecidos pelo embaixador de Maomé IV à corte de Luís XIV, onde o café era servido por belos escravos vestidos à turca.
Na capital francesa, os cafés irão ser, sobretudo, centros de cultura. Ia-se lá para conversar, trocar ideias e usufruir do espírito criador que neles emergia. Em 1675, abria o Procope, do siciliano e ex-vendedor ambulante de café Francesco Procopio Dei Coltelli. Luxuoso, o novo estabelecimento estava decorado com espelhos, tapeçarias, lustres de cristal e mesas de mármore. Dei Coltelli preocupara-se não apenas a feitura do café (a cozinha era um verdadeiro laboratório), mas também com a maneira de servir os clientes. Os criados usavam perucas e aventais brancos e serviam água gelada e frutos cristalizados em bandejas prateadas. La Fontaine, Diderot, Voltaire, eram alguns dos escritores que por lá se perdiam em longas dissertações. Também ali se encontravam os revolucionários Danton, Marat, Robespierre e Camille Desmoulins e dali partiria a ordem para o ataque às Tulherias, residência de Luís XVI. Depois da Revolução, o Procope voltaria a reunir escritores: George Sand, Musset, Verlaine e muitos mais.
Outro dos famosos cafés de Paris, o La Regence, ficou célebre pelas partidas de xadrez e pelo jogo de damas. O poeta Mário de Sá-Carneiro também o frequentou. Em Montparnasse, o Café de la Rotonde ganhou reputação de alfobre de anarquistas, mas por lá passaram exilados como Lenine e Mussolini.
Já no século XX, tornar-se-iam referência, entre outros, o Deux Magots e o Café de Flore (aberto em 1885). Foi às suas mesas que se discutiram e criaram os fundamentos do grupo dadaísta. Apollinaire só deixou de o frequentar quando, depois da Grande Guerra, a pneumónica o matou. Nos anos 30, o Flore reviveria com intelectuais como Michel Leiris, Raymond Queneau, George Bataille, Robert Desnos, entre muitas outras celebridades, de Hemingway a Simone de Beauvoir e Sartre, sem esquecer os surrealistas e gerações de cineastas.
Nem toda a Europa aderiria da mesma maneira e ao mesmo tempo ao consumo do café. Os alemães continuavam a preferir a cerveja e a aguardente. Apesar de o conhecerem desde a segunda metade do século XVII, só cem anos depois é que o seu consumo deixaria de se confinar às classes altas e a estrangeiros. A primeira «Kaffehaus» a abrir na Alemanha, em 1678, no porto de Hamburgo, era de um inglês sabedor de quanto os seus compatriotas, com destaque para os marinheiros, apreciavam-no. Pouco a pouco, a moda impor-se-ia. As «Kaffehaus» tornavam-se centros de convívio onde se podia também ouvir música tocada por pequenos grupos - como o Collegium, de Leipzig, dirigido por Johann Sebastian Bach.
O mesmo acontecia em Viena no século XVIII, onde os cafés se impunham não apenas pelas opulentas decorações, mas sobretudo pela atmosfera agradável, acolhedora, íntima. Assim definida por um jornalista italiano: «Lugares onde afastamos as preocupações e apaziguamos o espírito quando perturbado.»
E também em Budapeste: no luxuoso Café New York, «engraxam-vos os sapatos e passam-vos o fato», escreveu o jornalista e poeta Jenõ Heltai (1871-1957). Como a gente de cultura se reunia nos cafés, havia estabelecimentos que davam papel para a escrita. «E alguns punham à disposição os seis volumes de uma enciclopédia, dicionários de várias línguas e atlas ( ...).»
No século XX, o regime comunista faria desaparecer as tertúlias, não obstante sobre elas se ter escrito nos anos 30: «A literatura húngara desenvolveu-se com a indústria do café. É nos cafés que nascem e morrem as revoluções» (in «Les Cafés Litteraires de Budapeste»).
À mesa do café nasceram e morreram revoluções em Portugal. Poder-se-á dizer que muito da história política do país se fez aí. No imaginário dos lisboetas menos novos, a Brasileira - sem o actual balcão -, os desaparecidos Café Chiado, Martinho e Brasileira (ambos do Rossio), Gelo, Chave d'Ouro, Portugal, Palladium, Montecarlo, Paulistaria, são lugares indissociavelmente ligados a um tempo de tertúlias artísticas e literárias. Não se ia ao café apenas para tomar apressada «bica»; ali estudava-se, ali aprendia-se com escritores, pintores, cientistas que lá estariam das tantas às tantas horas. Em alguns, como o Montecarlo, também se jogava bilhar, xadrez, gamão, damas. Engraxavam-se sapatos. E até se faziam conferências de imprensa, nenhuma tão famosa, todavia, como aquela em que Humberto Delgado, no Chave d'Ouro, em 1958, anunciou que demitiria Salazar.
Território quase exclusivamente masculino, poucas mulheres se atreviam a desafiar os costumes e a misturar-se com os grupos de homens, que, à volta da pequena mesa, reinventavam o mundo.
Não seria o Marquês de Pombal o responsável pelo aparecimento do primeiro café em Lisboa. Mas propiciaria a profusão destes estabelecimentos quando, depois do terramoto de 1755, com o plano de recuperação, abriu novas perspectivas urbanísticas e comerciais. Gérard-Georges Lemaire (in «Les Cafés Littéraires», Paris, 1977) menciona o botequim de Marcos Filipe, no Largo do Pelourinho. Fechou em 1860, depois de ter ganho reputação, no princípio do século XIX, de ponto de encontro de patriotas que conspiravam contra os invasores napoleónicos.
Entre o café e a taverna, os operários portugueses preferiam a segunda. A «gente fina» ia ao Nicola jogar bilhar. Não seria, porém, essa clientela que lhe daria fama até hoje. Mas as tertúlias de políticos e de poetas como Bocage. Quem muito lhes apreciava a presença, em particular a dos poetas, era o criado José Pedro da Silva. Emprestava-lhes dinheiro «a fundo perdido» e, no caso de Bocage, pagou-lhe mesmo o funeral.
José Pedro da Silva deixou o Nicola para se estabelecer ao lado por conta própria. Aprimorar-se-ia na decoração do botequim com cachos de uva e parras, pintados a primor. E lá começaram a chamar-lhe «das Parras», ponto de encontro de simpatizantes liberais e artistas de vários misteres.
Em 1824, quando fechou, deixava a memória de algo irrepetível: um gabinete, que o proprietário mandara construir a um canto do salão, para uso exclusivo dos poetas: chamava-se Lugar Favorito dos Sábios. Lá entrar constituía privilégio.
«Lisboa era o Chiado, e o Chiado era o Marrare, e o Marrare dava o tom (...)», escrevia Sousa Bastos, em «Lisboa Velha, Setenta Anos de Recordações». Inaugurado em 1820 e de certo modo sucessor do Botequim das Parras, o Marrare era o mais requintado dos quatro cafés que o napolitano António Marrare abrira em Lisboa. Um luxo, a decoração de madeira polida, que logo lhe valeu o sobrenome de Marrare do Polimento. Além da sala de bilhar, tinha ainda um pequeno pátio coberto por uma clarabóia envidraçada onde, no Verão, as senhoras podiam comer os melhores gelados da cidade. Polido era também o atendimento: criados de libré serviam excelente café em cafeteiras de prata. Requintes para uma clientela ávida de mudança. O Marrare tornara-se «o lugar de reunião de todos os elegantes e todos os homens de Lisboa», como escreveu Bulhão Pato. Basta lembrarmos alguns dos indefectíveis: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Passos Manuel, José Estêvão. Fechado em 1866, o Marrare reviveria em «Os Maias» de Eça de Queirós. No século seguinte, no mesmo número da Rua Garrett, teria digno sucessor: aquele que alguns considerariam o mais belo de Lisboa: o café Chiado (1925-63).
Tantos outros cafés houve na cidade com histórias que fizeram a história cultural e política do país: um dos mais antigos, o Martinho da Arcada, que Pessoa, sentando-se sempre à mesma mesa, frequentou até morrer; o Herminius, na Almirante Reis, um café de «reformados, de desempregados e de pequenos chulos», como escreveu Cardoso Pires, foi, com o Gelo, ponto de encontro do grupo surrealista. O Vá-Vá, também conhecido pelo «ninho de lacraus», nos anos 60, reunia realizadores do cinema novo português. Na mesma altura, Ferreira de Castro frequentava a pastelaria Veneza. Almada Negreiros, a pequena Brasileira do Chiado.
José Cardoso Pires tanto ia ao minúsculo Passo - poiso de Ventura Ferreira, Fernando Namora e Palla e Carmo, onde se bebia o meio uísque mais barato de Lisboa - como ao Montecarlo, que juntava Carlos Oliveira, Abelaira, Gomes Ferreira e outros «herdeiros» do neo-realismo. Coexistiam - à distância de algumas mesas - com surrealistas e «aparentados». De Pedro Oom a Virgílio Martinho, de Luís Pacheco a Herberto Helder.
O 25 de Abril confundiria, no entanto, à sombra do PCP, parte substancial dessas capelinhas. Último grande café de tertúlias da cidade, o Montecarlo congregou os clientes dos que iam fechando: até ao seu encerramento, nos anos 90.